sábado, 30 de janeiro de 2010

Com a morte na sola dos sapatos



A morte sempre foi para mim algo como uma licença poética. Ela sempre estava ali, sinistramente disponível, para ser requisitada quando assim eu precisasse. Era tão fácil falar que eu preferia estar morta do que sofrer das dores que eu acreditava que o mundo impunha sobre meus ombros. Mas a morte é zombeteira e, quando eu menos esperava, ela me mostrou seus dentes afiados. Tudo que me restou fazer foi abaixar a cabeça e chutar as nésporas caídas na calçada, com as mãos no bolso, como eu fazia quando era criança e perdia o ônibus da escola.

Primeiro, minha avó. Três meses depois, meu pai. Meu pai foi a primeira pessoa morta com quem eu realmente conversei. O que, no meu caso, soa no mínimo tardio. Mas isso é outra história. A questão é que me entristece enormemente ter de confessar algo assim, mas meu pai não tinha uma expressão plácida. As mãos geladas que peguei nas minhas ostentavam inúmeras, imensas, marcas roxas de agulhas. Sim, ele sofreu. E não, ele não queria morrer. Disso, tenho certeza. Talvez por esse motivo, ou pelo único e maravilhoso fato de ele ser meu pai, ele seja o meu primeiro e definitivo memento mori. Nunca esquecerei do rosto de meu pai morto assim como nunca esquecerei de seu sorriso, de seu abraço apertado, de sua voz grave, do jeito que ele olhava as estrelas quando achava que estava sozinho na varanda.

Meu pai foi "enterrado" em uma gaveta. Não havia terra para jogar sobre a sepultura, como eu sempre imaginei que aconteceria em uma ocasião como aquela. Por isso, me encarreguei de aplicar sobre a tampa da gaveta a primeira leva de cimento que lacraria aquele momento para sempre. Minha mãe sempre me diz que aquela se tornaria a lembrança mais triste de sua vida. Para mim, era simplesmente o que eu deveria fazer. Levo essas coisas a sério, embora esteja tão fora de moda.

A partir desse dia, a morte deixou de ser um personagem dos livros e dos poemas que eu lia e releio até hoje para se tornar uma presença física. Alguém que me acompanha em todos os momentos, que rouba de relance as cenas do filme no cinema, nacos dos sorvetes do verão, que sobre os meus ombros lê os copiões de tudo aquilo que escrevo. Se sua presença me incomoda? Absolutamente. Ela é uma parceira de dança ruim, mas pelo menos eu tenho a impressão de que nunca estou dançando sozinha.

No final do último ano, ela me pegou pela mão e me conduziu em uma valsa na qual só ela conhecia os passos. Não senti medo, de qualquer forma. Muito pelo contrário. A morte é um delírio, por isso é tão fácil se apaixonar por ela. Além do fato de ela ser a única amante que está sempre com os braços abertos, o único amor seguro, o único infinito que nossa vã ciência reconhece de fato. Entretanto, nunca fui muito boa nessa coisa de me deixar guiar e, desta vez, mesmo em tão célebre e costumeira companhia, não foi diferente. E cá estou eu, perdida em um hotel numa cidade estranha, escrevendo as primeiras linhas desse novo blog em uma noite de insônia e de uma tristeza que se insinua.

Quanto à Dona Morte? Ela nunca sente sono, nem fome, ou frio. Nunca reclama de nada, a companheira ideal. Ela deve estar em algum lugar por aqui, me aguardando para nossa usual partida de xadrez de antes de dormir.