quinta-feira, 20 de maio de 2010


Já caí de escadas. Já vomitei em banheiros sujos. Já acordei ao lado de pessoas cujos nomes não me lembrava. Já arrumei brigas pelo simples prazer de levar e dar uns socos. Já me arrependi. Já chorei de ódio. Já xinguei para a vizinhança inteira ouvir. Já perdi a noção e a razão. Já me gabei de meu egoísmo. Já traí um amigo. Eu já menti.

E eu amo loucamente todos os dias.

Quem nunca fez nada disso, por favor, não me telefone, não me mande e-mails nem me cumprimente na rua. Sou conhecida por minha fobia a extraterrestres.


terça-feira, 9 de março de 2010

Brincando de Deus


Eu não sou uma pessoa religiosa. Nunca fui. Fui batizada na igreja porque minha mãe queria fazer uma bata para mim com a seda francesa que ela havia comprado em uma promoção. Fiz primeira comunhão em troca de uma bicicleta que nunca chegou. Eu acredito em bondade, caridade, amor pelo próximo e por aquilo que nos cerca, todas essas coisas que todo mundo adora dizer, mas que é tão difícil seguir.

Mas hoje, por uma dessas vicissitudes da vida, ando cercada por pessoas extremamente religiosas. O que ao mesmo tempo me diverte, intriga e, sim, irrita. Toda fé cega me deixa um pouco de mau humor, entretanto, com o tempo, fui percebendo que as pessoa tem os mais diferentes motivos para se aterem a determinadas crenças. Eu, por outro lado, demorei tanto tempo para acreditar em mim mesma que, não, pelo menos por ora, prefiro dar prosseguimento ao culto do me, myself and I. Egoísmo? Talvez. Embora eu prefira chamar de pura e simples lei da sobrevivência.

Claro que isso não significa que eu esqueça os outros. Muito pelo contrário. Minha pequena família, meus amigos, todas as pessoas que me são caras e mesmo aquelas que eu ainda não conheço bem e que talvez nem virei a conhecer são uma parte tão grande de mim que é impossível não pensar na minha vida sem passar pelas de todas elas. E, nesse quesito, confesso que tive muita sorte. Tenho sempre ao meu lado pessoas incríveis, daquelas que é difícil acreditar que de fato existem.

Vira e mexe eu ouço: e aí, você não quer dar um pulo lá na minha igreja? E eu penso: será que se você me conhecesse de verdade, soubesse o que se passa por trás dessa muralha de cordialidade, você me faria esse convite? Será que você insistiria tanto se soubesse o que andei fazendo na noite passada? É bem provável que sim. Salvar a ovelha desgarrada e aumentar o número de dizimistas é a ordem do dia.

A questão é que depois desses trinta anos, cheguei a conclusão de que não, não quero nenhuma salvação no sentido bíblico da palavra. Acalento meus demônios como quem afaga filhotes. Eles são a minha inspiração, o que me move, o que me faz ver que a vida é muito mais dos que as mesquinharias do dia-a-dia. Gosto do lado selvagem, de viver sem rédeas, arrancar as cascas das minhas próprias feridas.

Eu brinco de Deus desde o momento em que acordo até a hora em que vou dormir. Não espero pela salvação divina, mas sim por uma vida plena, intensa, bebida em grandes goles até que se faça, mais uma vez, o silêncio.


sábado, 30 de janeiro de 2010

Com a morte na sola dos sapatos



A morte sempre foi para mim algo como uma licença poética. Ela sempre estava ali, sinistramente disponível, para ser requisitada quando assim eu precisasse. Era tão fácil falar que eu preferia estar morta do que sofrer das dores que eu acreditava que o mundo impunha sobre meus ombros. Mas a morte é zombeteira e, quando eu menos esperava, ela me mostrou seus dentes afiados. Tudo que me restou fazer foi abaixar a cabeça e chutar as nésporas caídas na calçada, com as mãos no bolso, como eu fazia quando era criança e perdia o ônibus da escola.

Primeiro, minha avó. Três meses depois, meu pai. Meu pai foi a primeira pessoa morta com quem eu realmente conversei. O que, no meu caso, soa no mínimo tardio. Mas isso é outra história. A questão é que me entristece enormemente ter de confessar algo assim, mas meu pai não tinha uma expressão plácida. As mãos geladas que peguei nas minhas ostentavam inúmeras, imensas, marcas roxas de agulhas. Sim, ele sofreu. E não, ele não queria morrer. Disso, tenho certeza. Talvez por esse motivo, ou pelo único e maravilhoso fato de ele ser meu pai, ele seja o meu primeiro e definitivo memento mori. Nunca esquecerei do rosto de meu pai morto assim como nunca esquecerei de seu sorriso, de seu abraço apertado, de sua voz grave, do jeito que ele olhava as estrelas quando achava que estava sozinho na varanda.

Meu pai foi "enterrado" em uma gaveta. Não havia terra para jogar sobre a sepultura, como eu sempre imaginei que aconteceria em uma ocasião como aquela. Por isso, me encarreguei de aplicar sobre a tampa da gaveta a primeira leva de cimento que lacraria aquele momento para sempre. Minha mãe sempre me diz que aquela se tornaria a lembrança mais triste de sua vida. Para mim, era simplesmente o que eu deveria fazer. Levo essas coisas a sério, embora esteja tão fora de moda.

A partir desse dia, a morte deixou de ser um personagem dos livros e dos poemas que eu lia e releio até hoje para se tornar uma presença física. Alguém que me acompanha em todos os momentos, que rouba de relance as cenas do filme no cinema, nacos dos sorvetes do verão, que sobre os meus ombros lê os copiões de tudo aquilo que escrevo. Se sua presença me incomoda? Absolutamente. Ela é uma parceira de dança ruim, mas pelo menos eu tenho a impressão de que nunca estou dançando sozinha.

No final do último ano, ela me pegou pela mão e me conduziu em uma valsa na qual só ela conhecia os passos. Não senti medo, de qualquer forma. Muito pelo contrário. A morte é um delírio, por isso é tão fácil se apaixonar por ela. Além do fato de ela ser a única amante que está sempre com os braços abertos, o único amor seguro, o único infinito que nossa vã ciência reconhece de fato. Entretanto, nunca fui muito boa nessa coisa de me deixar guiar e, desta vez, mesmo em tão célebre e costumeira companhia, não foi diferente. E cá estou eu, perdida em um hotel numa cidade estranha, escrevendo as primeiras linhas desse novo blog em uma noite de insônia e de uma tristeza que se insinua.

Quanto à Dona Morte? Ela nunca sente sono, nem fome, ou frio. Nunca reclama de nada, a companheira ideal. Ela deve estar em algum lugar por aqui, me aguardando para nossa usual partida de xadrez de antes de dormir.